04 dezembro, 2014

OS MAIS BELOS CAMINHOS DE FERRO (E Outras Estórias Sobre Carris) #2 - UM PASSEIO PELO RENO



Será certamente fácil perceber por que é que as linhas de caminho-de-ferro mais surpreendentes são aquelas que seguem junto a cursos de água ou nas montanhas. Para lá de todos os outros aspectos que aqui poderia enumerar, a paisagem é parte indissociável do prazer de viajar de comboio. O caminho-de-ferro tem a particularidade de poder abrir atalho onde nenhum outro meio de transporte o conseguiria - pelo menos sem causar impacto. O caminho-de-ferro é o único capaz de se imiscuir na paisagem sem a molestar.
De entre as incontáveis linhas que serpenteiam ao longo do vale de um rio, há na Europa duas que destacaria: a Linha do Douro e a Linha do Reno, entre Frankfurt e Colónia.

Estou à mais de uma hora preso no interior do avião (logo eu que gosto tanto disto!). O mau tempo em Frankfurt – aparentemente mais habitual do imaginava – não nos deixa descolar.
Talvez não seja muito comum alguém que se diz viajante, sentir tantos calafrios na hora de subir a bordo de um avião. Deve ser talvez como um apreciador de vinhos ter dificuldade em utilizar um saca-rolhas. Sem abrir a garrafa, não há como provar o agradável líquido.
Disse-o já noutra ocasião mas preciso repetir-me – porque a ideia perdesse tanto como a angústia chegado o momento do embarque. Não sei se é medo. Se é só medo – porque algum há-de ser – mas costumo dizer quando mo perguntam, que também não gosto particularmente de carapaus e que não é por isso que tenho medo deles. Não gosto! Simplesmente isso. Sei que também não gosto por ter um pouco de medo, mas é mais do que isso; não gosto da espera, dos controlos, da paisagem a uma escala impossível de abarcar, ou do catering que, ainda por cima, nem sempre safa a coisa.
Descolamos finalmente depois de hora e meia de expectativa. Esperemos que São Pedro tenha já descarregado toda a sua ira sobre Frankfurt e nos deixe finalmente voar e aterrar em segurança...
Sobre os céus, algures no caminho, o mais belo dos crepúsculos... Um céu azul escuro – parece ganga – tingido por laivos laranjas como pinceladas soltas sobre tela, e uma lua estreita, finíssima – parece uma banana, uma malagueta – tão fina que dir-se-ia não ser lua, antes a lâmina de uma foice sem cabo, tão fina que não lhe distingo as pontas afiadas.
O capitão anuncia a aterragem. A velocidade diminui, a altitude baixa, a temperatura aumenta. Estou por fim em Frankfurt.

É uma infelicidade o tempo manter-se assim mau (estávamos em Julho): abafado e chuvoso. Não é assim que se quer um passeio (porque é disso que se trata por mais que eu não goste da palavra – ainda que admita que por vezes gosto bem de passear) pelo rio.
Dirijo-me a Berlim em trabalho e aproveito a ocasião para descobrir este que é considerada por muitos, como um dos mais belos trajectos de comboio da Europa.
Vou para a estação com a antecedência de quem vai à bola. Não é só o jogo – é sobretudo o ambiente, a envolvência – e eu não quero só apanhar o comboio. Há falta de bifanas e couratos, sirvo-me de um café que me parece sempre a bebida ideal para começar o dia e ajudar a despertar os sentidos para o buliço da estação. É como se estivesse no meu habitat natural. Numa estação dificilmente me aborreço, num aeroporto, qualquer uma hora de espera me dana.
É redundante estar sempre a dizer que me deixo encantar por estas estações, mas que posso eu fazer!? Carregam a aura de outros tempos; marcam uma época; têm impregnado nos seus alicerces o peso da história e as estórias de quem nelas se deteve; guardam recantos de fuligem e o silvo das máquinas; abrigam os abraços, os sorrisos e as lágrimas das despedidas e dos reencontros. Ninguém se despede à janela de um avião, nem sequer no primeiro degrau das escadas de acesso à porta traseira. O avião não se dá a esse luxo, a esse romantismo. E eu perco-me em pensamentos contemplando a arquitectura, o ferro e o vidro, os recortes neo-renascentistas e neo-clássicos, as pessoas apressadas para o trabalho, a amalgama de gente que se apinha na plataforma à chegada de um suburbano, o som dos trolleys arrastados pelo átrio, as mães empurrando carrinhos de bebé, os horários à entrada de cada linha, os relógios – sempre os relógios (o mais icónico dos elementos de uma estação), as locomotivas vermelhas dos comboios regionais, as automotoras brancas de alta velocidade e nariz achatado, a sombra e a luz esconsa e modesta que inunda a gare.

Noites mal dormidas é nisto que resultam. O balanço do comboio – a juntar ao mau tempo que faz lá fora – embalam-me repetidamente para o sono. Faço um esforço hercúleo por me manter acordado e contemplar a paisagem que corre do outro lado da vidraça, ainda que só depois de Mainz – talvez mesmo só em Bingen am Rhein – a viagem reproduza algo verdadeiramente digno de registo.
Bingen devolve-me ao Douro e transporta-me à Escócia, como se as duas realidades fossem possíveis de combinar. Um vale cinzento, húmido e frio, de onde brotam vinhedos trepando encosta acima – alinhados com se tivessem acabado de ser penteados –, pontuado de castelos que diria dessas paragens enevoadas do norte da grande ilha britânica. Tenho a sensação de perder escala e me tornar um pequeno boneco numa maqueta animada.
O comboio avança margem fora, paralelo à estrada onde tenho a impressão de ver mais ciclo turistas do que propriamente automóveis e que por sua vez segue ela também paralela ao rio. Do lado direito, na outra margem, segue uma outra linha. Deduzo que destinada preferencialmente ao transporte de mercadorias. Atento nas balsas chatas e nas barcarolas de excursionistas que sobem o rio; numa igreja de tijolo alaranjado e o seu pequeno cemitério contíguo; nas outras todas de telhados pontiagudos; no casario de aspecto medieval; nos edifícios dispostos e aparentados a casinhas e hotéis do Monopólio; numa construção incaracterística no meio do rio; nos túneis, nas escarpas afiadas e nas vertentes íngremes; nos castelos de ar sombrio em lugares inusitados e atravessados pela neblina; e na falta de luz que tudo reflectiria nas agora turvas e acastanhadas águas do Reno.
Entre as estações e o perfilar das vistas, tenho um vislumbre de inocência e fico a pensar que a Alemanha tem esse condão em mim: o de me devolver à infância, mas a uma à qual não pertenci que não apenas no meu imaginário.

Chegamos a Koblenz. O vale alarga e afasta-nos das margens. Cruzamos afluentes. Vejo pontes em arco. O sono persiste. Intensifica-se. Já não há rio nem encostas verdejantes, nem tão pouco o mau tempo e a névoa de até agora. Deu a vez a um sol tímido que convida ainda mais à sesta. Vou ceder. Tenho esperança que não e que a paisagem melhore. Não melhora. Adormeço… Há ainda um longo caminho até Berlim.

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